
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO – 15ª R COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: PROVENTOS – BENS PENHORÁVEIS – Advocacia Trabalhista Curitiba – Zavadniak & Honorato Advogados Trabalhistas Curitiba
PROCESSO TRT AP Nº 2.444/2001
ACÓRDÃO TRT N° 0215/2002
EMENTA
Colisão de direitos fundamentos – Proventos – Bens penhoráveis. É válida a penhora de proventos de benefícios previdenciários, comprovada a inexistência de outros bens que garantam o crédito trabalhista, vez que este goza do status de alimentar, não sendo razoável sacrificar totalmente um direito fundamental em favor de outro. Esta é a decorrência da aplicação dos princípios da unidade da Constituição, da concordância prática, da proporcionalidade e da razoabilidade para o caso de colisão de direitos fundamentais.
Versa o presente expediente sobre agravo de petição interposto por Francisco M. Xavier em face de Fonseca Diesel Ltda., eis que irresignado com a decisão de fl. 59 que indeferiu seu pedido no sentido de que o INSS procedesse ao desconto mensal nos proventos e pensão do titular da executada, com vistas ao pagamento de acordo judicial não cumprido.
Em síntese, alega que não pretende penhorar proventos, mas sim, tirar dele percentual da margem permitida por lei, sem, contudo, causar prejuízo ao executado.
A parte agravada não apresentou contra-razões ao agravo interposto.
O parecer do d. MPT é pelo conhecimento e improvimento para o fim de que o responsável pelo adimplemento do acordo judicial nomeie bens disponíveis à penhora.
É o relatório.
VOTO
Do conhecimento
Recurso cabível e tempestivo. Matéria e valores impugnados em conformidade com o art. 897, § 1°, da CLT. Partes bem representadas. Assim, conheço do agravo de petição, eis que atendidos os pressupostos legais de admissibilidade.
Do mérito
Insurge-se o agravante/reclamante contra decisão de fl. 70 proferida pelo
juízo da execução, que denegou pedido de penhora incidente sobre valores auferidos pelo executado perante o INSS com o fim de que seja quitado crédito trabalhista, mantendo os mesmos fundamentos da decisão de fl. 59, isto é, que o desconto no contracheque não pode prosperar por ser impossível, abusivo e ilegal. Ressalta-se que foi homologado acordo judicial entre as partes à fl. 32 dos autos.
In casu, estamos diante de um conflito normativo, caracterizado por uma colisão de direitos fundamentais, vejamos pois.
O "trabalho" está incluído no rol dos direitos sociais, elevados pela nossa Carta Magna ao status de direito fundamental (art. 6°, CF/88). Assim, os direitos dos trabalhadores (art. 7° da CF/88), que via de conseqüência são direitos humanos fundamentais, estão colocados em posição hermenêutica superior em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando, entre outras, as seguintes características: a) imprescritibilidade: não se perdem pelo decurso do prazo; b) irrenunciabilidade: não podem ser objeto de renúncia; c) inviolabilidade: impossibilidade de sua não-observância por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade; d) universalidade: sua abrangência engloba todos os indivíduos, independentemente de sexo, raça, crença e nacionalidade; e) efetividade: o Poder Público deve atuar no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos; f) complementariedade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma integrada, com o fim de se alcançar os objetivos previstos pelo legislador constituinte. Além disso, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais são, em regra, de eficácia e aplicabilidade imediata (CF, art. 5°, § 1°).
Os direitos sociais, na visão do eminente jurista Alexandre de Morais (in Direitos Humanos Fundamentais, Atlas), "caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado democrático, conforme preleciona o art. 1°, IV".
Retomando o ponto de partida da presente discussão, quais seriam então os direitos fundamentais em colisão?
Inicialmente, aborda-se o direito do agravante/reclamante de obter a satisfação do seu crédito trabalhista, consti-
tuído quando da homologação do acordo judicial de fl. 32, considerando-se que tal crédito tem natureza alimentar e decorre do princípio constitucional da proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa, consagrado no inciso I do art. 7° da CF/88, cuja eficácia é indispensável para o reconhecimento do valor social do trabalho e da dignidade do trabalhador e de sua família.
Da mesma forma, é sabido que os valores percebidos pelo executado/reclamado a título de benefício previdenciário são protegidos em face dos credores do segurado com a cláusula de impenhorabilidade, vez que também gozam de natureza alimentar, o que ocorre em observância ao princípio da proteção do salário, proclamado no inciso X do art. 7° da CF/88. Dessa forma, a impenhorabilidade dos proventos (em sentido lato), nos exatos termos do CPC (arts. 648 e 649, IV e VII), constitui garantia constitucional como forma de também assegurar a dignidade do trabalhador e de sua família, admitindo a constrição judicial tão-somente para pagamento de prestação alimentícia.
Pois bem, caracterizados os direitos fundamentais em colisão, passemos à análise da melhor forma de solucionar o presente conflito entre normas constitucionais, compatibilizando-as, de forma que ambas tenham aplicabilidade.
É importante que se teçam algumas considerações genéricas sobre "regras e princípios", o que se faz baseado nos estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy sobre o tema. Já é pacífico que "norma" é o gênero de que são espécies as "regras" e os "princípios". Assim, têm-se como ponto de intersecção a normatividade, o caráter preceptivo, contudo, entre eles há muitas diferenças, as quais destacamos:
a) quanto à estrutura, regras são normas cuja estrutura lógico-deôntica prescrevem a descrição de uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica (imputação) de sua ocorrência; enquanto os princípios são preceitos mais abstratos que prescrevem valor, isto é, também pertencem à categoria dos conceitos deontológicos (os quais encerram um mandado, um comando, uma faculdade), mas com estrutura lógica diferente das regras. Pode-se afirmar que os princípios de direito são conceitos deontológicos de conteúdo axiológico;
b) quanto ao conteúdo, os princípios assentam-se em conteúdo valorativo, ordenando que se realize algo na maior medida possível, como mandados de otimização; já as regras exigem um cumprimento pleno e, nesse sentido, só podem ser ou cumpridas ou descumpridas;
c) quanto à generalidade e à abstratividade, as regras são menos gerais que os princípios e dirigem-se a fatos concretos;
d) quanto à origem, as regras emanam do poder estatal ou são por este chanceladas, enquanto a força normativa dos princípios provém da sua historicidade, sua autoridade encerra-se na base do sistema;
e) quanto à hierarquia, os princípios situam-se no topo (em grau e qualidade), em face da sua função interpretativa, fundamentadora, integrativa, supletiva, informadora, diretiva e limitativa;
f) quanto à aplicação, as regras têm aplicação direta; os princípios indireta, utilizando-se daquelas para concretizarem-se;
g) quanto à relatividade, não há princípio que possa ser acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese;
h) quanto ao conflito, a convivência dos princípios é conflitual, enquanto a das regras é antinômica. Os princípios colidentes coexistem, ainda que sob tensão. As regras, ao contrário, são aplicáveis na forma do tudo ou nada, já que as regras antinômicas excluem-se. O conflito de regras resolve-se na dimensão da validade, na qual se uma vale, a outra não vale, ou seja, a aplicação de uma implica negar a validade da outra – a antinomia é resolvida, pois, pelos critérios cronológico, hierárquico e da especialidade. Já a colisão de princípios é resolvida na dimensão do valor, utilizando-se a cedência, em que um cede a outro, sem, contudo, perder validade. Não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor de outro, mas sim levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro. Em outras palavras, os princípios conflitantes mantêm-se válidos paralelamente, mas um deles tem peso maior em determinado caso concreto.
Como os direitos fundamentais são outorgados por normas jurídicas que possuem as características de princípios, o que foi dito sobre a colisão de princípios se aplica, regra geral, para os casos de colisão entre direitos fundamentais.
Faz-se aqui alusão de que todos os métodos de interpretação da Constituição dentro da hermenêutica integram-se num conjunto harmônico para a perfeita busca do sentido constitucional, e desenvolvem-se à sombra dos princípios da interpretação constitucional, segundo Canotilho (in Direito Constitucional, Coimbra: Almedina), que nunca devem ser olvidados, em suma: a) da unidade da Constituição: requer a contemplação da Constituição como um todo, a compreensão do texto constitucional como um sistema único, compatibilizando-se efeitos discrepantes; b) do efeito integrador: na resolução dos problemas jusconstitucionais o intérprete deve dar primazia aos critérios que favoreçam a unidade política, mediante a integração política e social; c) da máxima efetividade: significa que o intérprete deve sorver da norma constitucional o valor que Ihe confira máxima eficácia em termo de operatividade do preceito; d) da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão assumir posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador originário; e) da concordância prática: consiste em manter a ordem dos bens jurídicos, de forma a evitar o sacrifício de uns em face de outros;
f) da força normativa da Constituição: recomenda se prefira, dentre as interpretações possíveis, a que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.
Para solucionar uma autêntica colisão de direitos fundamentais, a melhor doutrina propõe que cabe ao intérprete-aplicador realizar a ponderação dos bens envolvidos, visando resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Nessa tarefa podemos guiar-nos, principalmente, pelos princípios da unidade da Constituição; da concordância prática; da proporcionalidade; e da razoabilidade, comentados a seguir para o caso sub examine.
O princípio da unidade da Constituição já foi comentado no parágrafo anterior.
O princípio da concordância prática ou da harmonização é consectário lógico do princípio da unidade constitucional, em que os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos.
Por sua vez, a máxima da proporcionalidade é a realização do princípio da concordância prática no caso concreto. A lei da ponderação, segundo R. Alexy, consiste em que "a afetação de um direito só é justificável pelo grau de importância de satisfação de outro direito oposto".
A proporcionalidade, como princípio dos princípios, abriga em seu conceito as idéias de adequação (dos meios aos fins), de necessidade ou exigibilidade (quando há que se decidir, que se opte pelo meio menos gravoso), de proibição do arbítrio ou do excesso (a escolha do meio mais idôneo e a menor restrição possível), e a proporcionalidade em sentido estrito. Em suma, significa que quando se tem um ou mais direitos fundamentais em conflito num determinado caso concreto, devem eles sofrer uma ponderação em razão do bem ou valor que se pretenda tutelar. Tal princípio não se encontra expresso na Constituição brasileira, porém destaca-se na doutrina e jurisprudência como corolário da boa razão, da eqüidade e da Justiça, tendo sido desenvolvido sobretudo no direito alemão, haja vista a necessidade de assegurar a efetividade de normas contraditórias da Constituição.
Na solução do presente conflito normativo, invoca-se, ainda, o princípio da razoabilidade (ou racionalidade). Apesar da semelhança entre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, necessário se faz distingui-los. Nos dizeres de Cármem Rocha (in Princípios Constitucionais da Administração Pública), é a razoabilidade que impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo, acertando-se a sua interpretação e, por conseguinte, a sua aplicação, enquanto a proporcionalidade possibilita que se o conheça em sua relação com os demais princípios e regras que compõem o sistema constitucional.
No caso sub oculi, o executado percebe dois benefícios da Seguridade Social, qual seja, pensão por morte (21/106598019-9), no valor de 1 (um) salário mínimo mensal, e aposentadoria por invalizez (32/71144264-9), índice de 5,81 salários mínimos mensais, segundo informação do Ofício n° 2/2001, do INSS, acostado à fl. 61 dos autos, o que corresponde, em valores atuais, a aproximadamente R$ 1.200,00 o total dos benefícios (6,81 x SM). Já a dívida trabalhista, resultante do acordo judicial não cumprido de fl. 32, corresponde, em valores atualizados até março de 2000 (fl. 39), a R$ 994,15, devendo, pois, ser atualizada até os dias atuais.
Diante de todo o exposto, e demonstrada a ausência de outros bens para a garantia do crédito trabalhista (conf. Certidão de fl. 42-v), torna-se válida a realização da constrição judicial dos benefícios previdenciários do executado, respeitando-se o limite máximo mensal de um salário mínimo, inclusive no 13° salário, até a integral quitação da dívida, como o único meio para a concretização do crédito trabalhista.
Assim, em observância principalmente aos princípios da unidade da Constituição, da concordância prática, da proporcionalidade e da razoabilidade, acha-se a justa medida, ponderando-se ambos os direitos fundamentais, de modo que não se aniquile o direito do agravante/reclamante em favor do direito do executado, que deve honrar o acordo judicial firmado. Dessa forma, o agravante terá a satisfação do seu crédito trabalhista, o que ocorrerá de maneira não gravosa ao executado, com desconto mensal de no máximo um salário mínimo, de forma a não comprometer o seu sustento e de sua família, correspondendo tal desconto a um percentual inferior a 15% do total dos benefícios (1 : 6,81 = 14,68%).
Por último, peço vênia para citar um trecho do livro Os Princípios de Direito do Trabalho na Lei e na Jurisprudência, LTr., de minha lavra, sobre o porquê de dispensar ao Direito do Trabalho tratamento especial no tocante à sua interpretação, que tem pertinência com a matéria em debate:
"... Empregar os métodos e processos tradicionais, como uma estrutura petrificada, corresponde a jogar pela janela a proteção que ao trabalhador foi dada pela porta. De que valeria o direito novo diante de práticas tradicionais, para não dizer arcaicas, caducas, inadequadas até ao direito comum no contexto atual? Sabemos que o direito se realiza no momento de sua aplicação. À aplicação precede a interpretação. A má-interpretação torna má a lei boa. Por outro lado, o bom intérprete torna boa a lei antiquada. É mais vantajoso que se tenha bons juízes do que boas leis, porque o bom juiz, de posse da arte de interpretar, é capaz de corrigir o direito injusto sem ir contra ele.
O que seria do direito novo sem a renovação dos seus executores? Renovação no sentido de que os cultores do Direito do Trabalho devem-se renovar, desprendendo-se dos rituais tradicionais, abrindo a mente para a nova missão, que é servir à causa social, promover a justiça social na parcela que lhes cabe.
Uma coisa é a Justiça, outra os tribunais. Os tribunais aplicam o Direito fazendo justiça. O Direito, por sua vez, não se resume nas leis, é mais amplo, mesmo o Direito positivo. O Direito contém todas as leis, costumes, princípios, recursos interpretativos e doutrina. Como o sistema jurídico tem de ser pleno, mesmo por ficção, os juízes e tribunais extraem todo o Direito no sistema positivo. Para tanto empregam suas habilidades interpretativas."
CONCLUSÃO
Ante o exposto, acordam os Exmos. Srs. Juízes do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, por unanimidade, conhecer do agravo de petição e, no mérito, por maioria, dar-lhe parcial provimento para autorizar que seja feito o desconto sobre os benefícios previdenciários do executado, respeitando o limite máximo mensal de um salário mínimo, inclusive no 13° salário, até a integral quitação da dívida. Vencidos os Exmos. Srs. Juízes Wellington Jim Boavista e Liana Chaib que negavam provimento ao agravo de petição.
Teresina (PI), 29 de janeiro de 2002.
Fausto Lustosa Neto
Juiz-presidente
Francisco M. M. de Lima
Juiz-relator
Ciente: Ministério Público do Trabalho
(Publicado no DJPI de 22.3.2002.)
Advocacia Especializada – Robson Zavadniak advogado
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PROCESSO TRT AP Nº 2.444/2001
ACÓRDÃO TRT N° 0215/2002
EMENTA
Colisão de direitos fundamentos – Proventos – Bens penhoráveis. É válida a penhora de proventos de benefícios previdenciários, comprovada a inexistência de outros bens que garantam o crédito trabalhista, vez que este goza do status de alimentar, não sendo razoável sacrificar totalmente um direito fundamental em favor de outro. Esta é a decorrência da aplicação dos princípios da unidade da Constituição, da concordância prática, da proporcionalidade e da razoabilidade para o caso de colisão de direitos fundamentais.
Versa o presente expediente sobre agravo de petição interposto por Francisco M. Xavier em face de Fonseca Diesel Ltda., eis que irresignado com a decisão de fl. 59 que indeferiu seu pedido no sentido de que o INSS procedesse ao desconto mensal nos proventos e pensão do titular da executada, com vistas ao pagamento de acordo judicial não cumprido.
Em síntese, alega que não pretende penhorar proventos, mas sim, tirar dele percentual da margem permitida por lei, sem, contudo, causar prejuízo ao executado.
A parte agravada não apresentou contra-razões ao agravo interposto.
O parecer do d. MPT é pelo conhecimento e improvimento para o fim de que o responsável pelo adimplemento do acordo judicial nomeie bens disponíveis à penhora.
É o relatório.
VOTO
Do conhecimento
Recurso cabível e tempestivo. Matéria e valores impugnados em conformidade com o art. 897, § 1°, da CLT. Partes bem representadas. Assim, conheço do agravo de petição, eis que atendidos os pressupostos legais de admissibilidade.
Do mérito
Insurge-se o agravante/reclamante contra decisão de fl. 70 proferida pelo
juízo da execução, que denegou pedido de penhora incidente sobre valores auferidos pelo executado perante o INSS com o fim de que seja quitado crédito trabalhista, mantendo os mesmos fundamentos da decisão de fl. 59, isto é, que o desconto no contracheque não pode prosperar por ser impossível, abusivo e ilegal. Ressalta-se que foi homologado acordo judicial entre as partes à fl. 32 dos autos.
In casu, estamos diante de um conflito normativo, caracterizado por uma colisão de direitos fundamentais, vejamos pois.
O “trabalho” está incluído no rol dos direitos sociais, elevados pela nossa Carta Magna ao status de direito fundamental (art. 6°, CF/88). Assim, os direitos dos trabalhadores (art. 7° da CF/88), que via de conseqüência são direitos humanos fundamentais, estão colocados em posição hermenêutica superior em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando, entre outras, as seguintes características: a) imprescritibilidade: não se perdem pelo decurso do prazo; b) irrenunciabilidade: não podem ser objeto de renúncia; c) inviolabilidade: impossibilidade de sua não-observância por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade; d) universalidade: sua abrangência engloba todos os indivíduos, independentemente de sexo, raça, crença e nacionalidade; e) efetividade: o Poder Público deve atuar no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos; f) complementariedade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma integrada, com o fim de se alcançar os objetivos previstos pelo legislador constituinte. Além disso, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais são, em regra, de eficácia e aplicabilidade imediata (CF, art. 5°, § 1°).
Os direitos sociais, na visão do eminente jurista Alexandre de Morais (in Direitos Humanos Fundamentais, Atlas), “caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado democrático, conforme preleciona o art. 1°, IV”.
Retomando o ponto de partida da presente discussão, quais seriam então os direitos fundamentais em colisão?
Inicialmente, aborda-se o direito do agravante/reclamante de obter a satisfação do seu crédito trabalhista, consti-
tuído quando da homologação do acordo judicial de fl. 32, considerando-se que tal crédito tem natureza alimentar e decorre do princípio constitucional da proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa, consagrado no inciso I do art. 7° da CF/88, cuja eficácia é indispensável para o reconhecimento do valor social do trabalho e da dignidade do trabalhador e de sua família.
Da mesma forma, é sabido que os valores percebidos pelo executado/reclamado a título de benefício previdenciário são protegidos em face dos credores do segurado com a cláusula de impenhorabilidade, vez que também gozam de natureza alimentar, o que ocorre em observância ao princípio da proteção do salário, proclamado no inciso X do art. 7° da CF/88. Dessa forma, a impenhorabilidade dos proventos (em sentido lato), nos exatos termos do CPC (arts. 648 e 649, IV e VII), constitui garantia constitucional como forma de também assegurar a dignidade do trabalhador e de sua família, admitindo a constrição judicial tão-somente para pagamento de prestação alimentícia.
Pois bem, caracterizados os direitos fundamentais em colisão, passemos à análise da melhor forma de solucionar o presente conflito entre normas constitucionais, compatibilizando-as, de forma que ambas tenham aplicabilidade.
É importante que se teçam algumas considerações genéricas sobre “regras e princípios”, o que se faz baseado nos estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy sobre o tema. Já é pacífico que “norma” é o gênero de que são espécies as “regras” e os “princípios”. Assim, têm-se como ponto de intersecção a normatividade, o caráter preceptivo, contudo, entre eles há muitas diferenças, as quais destacamos:
a) quanto à estrutura, regras são normas cuja estrutura lógico-deôntica prescrevem a descrição de uma hipótese fática e a previsão da conseqüência jurídica (imputação) de sua ocorrência; enquanto os princípios são preceitos mais abstratos que prescrevem valor, isto é, também pertencem à categoria dos conceitos deontológicos (os quais encerram um mandado, um comando, uma faculdade), mas com estrutura lógica diferente das regras. Pode-se afirmar que os princípios de direito são conceitos deontológicos de conteúdo axiológico;
b) quanto ao conteúdo, os princípios assentam-se em conteúdo valorativo, ordenando que se realize algo na maior medida possível, como mandados de otimização; já as regras exigem um cumprimento pleno e, nesse sentido, só podem ser ou cumpridas ou descumpridas;
c) quanto à generalidade e à abstratividade, as regras são menos gerais que os princípios e dirigem-se a fatos concretos;
d) quanto à origem, as regras emanam do poder estatal ou são por este chanceladas, enquanto a força normativa dos princípios provém da sua historicidade, sua autoridade encerra-se na base do sistema;
e) quanto à hierarquia, os princípios situam-se no topo (em grau e qualidade), em face da sua função interpretativa, fundamentadora, integrativa, supletiva, informadora, diretiva e limitativa;
f) quanto à aplicação, as regras têm aplicação direta; os princípios indireta, utilizando-se daquelas para concretizarem-se;
g) quanto à relatividade, não há princípio que possa ser acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese;
h) quanto ao conflito, a convivência dos princípios é conflitual, enquanto a das regras é antinômica. Os princípios colidentes coexistem, ainda que sob tensão. As regras, ao contrário, são aplicáveis na forma do tudo ou nada, já que as regras antinômicas excluem-se. O conflito de regras resolve-se na dimensão da validade, na qual se uma vale, a outra não vale, ou seja, a aplicação de uma implica negar a validade da outra – a antinomia é resolvida, pois, pelos critérios cronológico, hierárquico e da especialidade. Já a colisão de princípios é resolvida na dimensão do valor, utilizando-se a cedência, em que um cede a outro, sem, contudo, perder validade. Não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor de outro, mas sim levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro. Em outras palavras, os princípios conflitantes mantêm-se válidos paralelamente, mas um deles tem peso maior em determinado caso concreto.
Como os direitos fundamentais são outorgados por normas jurídicas que possuem as características de princípios, o que foi dito sobre a colisão de princípios se aplica, regra geral, para os casos de colisão entre direitos fundamentais.
Faz-se aqui alusão de que todos os métodos de interpretação da Constituição dentro da hermenêutica integram-se num conjunto harmônico para a perfeita busca do sentido constitucional, e desenvolvem-se à sombra dos princípios da interpretação constitucional, segundo Canotilho (in Direito Constitucional, Coimbra: Almedina), que nunca devem ser olvidados, em suma: a) da unidade da Constituição: requer a contemplação da Constituição como um todo, a compreensão do texto constitucional como um sistema único, compatibilizando-se efeitos discrepantes; b) do efeito integrador: na resolução dos problemas jusconstitucionais o intérprete deve dar primazia aos critérios que favoreçam a unidade política, mediante a integração política e social; c) da máxima efetividade: significa que o intérprete deve sorver da norma constitucional o valor que Ihe confira máxima eficácia em termo de operatividade do preceito; d) da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão assumir posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador originário; e) da concordância prática: consiste em manter a ordem dos bens jurídicos, de forma a evitar o sacrifício de uns em face de outros;
f) da força normativa da Constituição: recomenda se prefira, dentre as interpretações possíveis, a que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.
Para solucionar uma autêntica colisão de direitos fundamentais, a melhor doutrina propõe que cabe ao intérprete-aplicador realizar a ponderação dos bens envolvidos, visando resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Nessa tarefa podemos guiar-nos, principalmente, pelos princípios da unidade da Constituição; da concordância prática; da proporcionalidade; e da razoabilidade, comentados a seguir para o caso sub examine.
O princípio da unidade da Constituição já foi comentado no parágrafo anterior.
O princípio da concordância prática ou da harmonização é consectário lógico do princípio da unidade constitucional, em que os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos.
Por sua vez, a máxima da proporcionalidade é a realização do princípio da concordância prática no caso concreto. A lei da ponderação, segundo R. Alexy, consiste em que “a afetação de um direito só é justificável pelo grau de importância de satisfação de outro direito oposto”.
A proporcionalidade, como princípio dos princípios, abriga em seu conceito as idéias de adequação (dos meios aos fins), de necessidade ou exigibilidade (quando há que se decidir, que se opte pelo meio menos gravoso), de proibição do arbítrio ou do excesso (a escolha do meio mais idôneo e a menor restrição possível), e a proporcionalidade em sentido estrito. Em suma, significa que quando se tem um ou mais direitos fundamentais em conflito num determinado caso concreto, devem eles sofrer uma ponderação em razão do bem ou valor que se pretenda tutelar. Tal princípio não se encontra expresso na Constituição brasileira, porém destaca-se na doutrina e jurisprudência como corolário da boa razão, da eqüidade e da Justiça, tendo sido desenvolvido sobretudo no direito alemão, haja vista a necessidade de assegurar a efetividade de normas contraditórias da Constituição.
Na solução do presente conflito normativo, invoca-se, ainda, o princípio da razoabilidade (ou racionalidade). Apesar da semelhança entre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, necessário se faz distingui-los. Nos dizeres de Cármem Rocha (in Princípios Constitucionais da Administração Pública), é a razoabilidade que impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo, acertando-se a sua interpretação e, por conseguinte, a sua aplicação, enquanto a proporcionalidade possibilita que se o conheça em sua relação com os demais princípios e regras que compõem o sistema constitucional.
No caso sub oculi, o executado percebe dois benefícios da Seguridade Social, qual seja, pensão por morte (21/106598019-9), no valor de 1 (um) salário mínimo mensal, e aposentadoria por invalizez (32/71144264-9), índice de 5,81 salários mínimos mensais, segundo informação do Ofício n° 2/2001, do INSS, acostado à fl. 61 dos autos, o que corresponde, em valores atuais, a aproximadamente R$ 1.200,00 o total dos benefícios (6,81 x SM). Já a dívida trabalhista, resultante do acordo judicial não cumprido de fl. 32, corresponde, em valores atualizados até março de 2000 (fl. 39), a R$ 994,15, devendo, pois, ser atualizada até os dias atuais.
Diante de todo o exposto, e demonstrada a ausência de outros bens para a garantia do crédito trabalhista (conf. Certidão de fl. 42-v), torna-se válida a realização da constrição judicial dos benefícios previdenciários do executado, respeitando-se o limite máximo mensal de um salário mínimo, inclusive no 13° salário, até a integral quitação da dívida, como o único meio para a concretização do crédito trabalhista.
Assim, em observância principalmente aos princípios da unidade da Constituição, da concordância prática, da proporcionalidade e da razoabilidade, acha-se a justa medida, ponderando-se ambos os direitos fundamentais, de modo que não se aniquile o direito do agravante/reclamante em favor do direito do executado, que deve honrar o acordo judicial firmado. Dessa forma, o agravante terá a satisfação do seu crédito trabalhista, o que ocorrerá de maneira não gravosa ao executado, com desconto mensal de no máximo um salário mínimo, de forma a não comprometer o seu sustento e de sua família, correspondendo tal desconto a um percentual inferior a 15% do total dos benefícios (1 : 6,81 = 14,68%).
Por último, peço vênia para citar um trecho do livro Os Princípios de Direito do Trabalho na Lei e na Jurisprudência, LTr., de minha lavra, sobre o porquê de dispensar ao Direito do Trabalho tratamento especial no tocante à sua interpretação, que tem pertinência com a matéria em debate:
“… Empregar os métodos e processos tradicionais, como uma estrutura petrificada, corresponde a jogar pela janela a proteção que ao trabalhador foi dada pela porta. De que valeria o direito novo diante de práticas tradicionais, para não dizer arcaicas, caducas, inadequadas até ao direito comum no contexto atual? Sabemos que o direito se realiza no momento de sua aplicação. À aplicação precede a interpretação. A má-interpretação torna má a lei boa. Por outro lado, o bom intérprete torna boa a lei antiquada. É mais vantajoso que se tenha bons juízes do que boas leis, porque o bom juiz, de posse da arte de interpretar, é capaz de corrigir o direito injusto sem ir contra ele.
O que seria do direito novo sem a renovação dos seus executores? Renovação no sentido de que os cultores do Direito do Trabalho devem-se renovar, desprendendo-se dos rituais tradicionais, abrindo a mente para a nova missão, que é servir à causa social, promover a justiça social na parcela que lhes cabe.
Uma coisa é a Justiça, outra os tribunais. Os tribunais aplicam o Direito fazendo justiça. O Direito, por sua vez, não se resume nas leis, é mais amplo, mesmo o Direito positivo. O Direito contém todas as leis, costumes, princípios, recursos interpretativos e doutrina. Como o sistema jurídico tem de ser pleno, mesmo por ficção, os juízes e tribunais extraem todo o Direito no sistema positivo. Para tanto empregam suas habilidades interpretativas.”
CONCLUSÃO
Ante o exposto, acordam os Exmos. Srs. Juízes do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, por unanimidade, conhecer do agravo de petição e, no mérito, por maioria, dar-lhe parcial provimento para autorizar que seja feito o desconto sobre os benefícios previdenciários do executado, respeitando o limite máximo mensal de um salário mínimo, inclusive no 13° salário, até a integral quitação da dívida. Vencidos os Exmos. Srs. Juízes Wellington Jim Boavista e Liana Chaib que negavam provimento ao agravo de petição.
Teresina (PI), 29 de janeiro de 2002.
Fausto Lustosa Neto
Juiz-presidente
Francisco M. M. de Lima
Juiz-relator
Ciente: Ministério Público do Trabalho
(Publicado no DJPI de 22.3.2002.)
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